Self Portrait

Self Portrait

Saturday 25 January 2014

Como as canções, há magia a viajar pelo mundo. Ou, pelo menos, assim rezam aqueles que dizem conhecer a história. 

A lua ia alta quando Augustus acordou. Por um momento, olhou em redor e esfregou os olhos, para se certificar de que tinha escapado incólume aos terríveis pesadelos da noite, mais uma vez. Sentou-se na cama, com a ponta dos pés a tocar o chão frio. Noutra ocasião teria sido uma sensação bastante desagradável, mas devido ao mais recente sobressalto, soube-lhe bem. Sentiu o frio, e sentiu que era real. Estava a salvo.

Apoiou totalmente os pés no chão e levantou-se, dirigindo-se à única janela do quarto, por onde transbordava uma lagoa de luz lunar. Lá no alto, milhões de pequenas gotas brilhavam, na sua margem. Observou-as por momentos. Pareciam geladas ao toque. Quis tocar-lhes, mas não foi frio que sentiu. Vestiu rapidamente as roupas que encontrou mais à mão, calçou-se, e saíu sem mais demoras.

*

Quando ficamos às escuras muito tempo, as coisas começam a ficar mais nítidas. Ganham formas. Os contornos começam a fazer sentido e, de repente, é como se já vivêssemos ali desde sempre. Esse momento chegara.

Augustus estava velho - velho de corpo, mas não de alma. Vivia ali à tanto tempo... assim como a lua. A lua já reparara nele, mas ele nunca a vira. Já olhara para ela, uma ou outra vez, mas nunca a vira. Até esse dia. Tanto podia ter 70 anos, como 7. Não importava. O corpo não era o importante, mas sim a mente. Nela encontrou as respostas, nela foi capaz de preencher aquilo que qualquer indivíduo comum passa anos à procura - a solução para o buraco sem fundo que têm no peito, que não os deixa dormir. 

Felicidade. Era possível, real. E estivera sempre ali, tão perto, dentro dele. Pudesse ele transformar-se e existir apenas no mundo metafísico... Ficara desperto. Sentia o fervilhar de emoções dentro de si. A magia estava prestes a renascer.

*

Nos dias que se seguiram, Augustus foi visto a dirigir-se com um determinado grupo de pessoas, cerca de cinco, a recantos sombrios da cidade, locais escuros, mas calmos e silenciosos. Foi uma mudança muito comentada, a princípio, pela gente que os observava. Com o tempo, os encontros tornaram-se menos frequentes, mas não menos importantes. Já ninguém reparava neles, quando apareciam. 

Secretamente, planeavam criar um objeto capaz de captar a verdadeira essência das pessoas e transformá-las nisso mesmo: alma e pensamentos. Na sua visão idealista do mundo, os seres iriam muito para além do mundo físico, trespassando a barreira espiritual. Era o preencher do vazio.

O peculiar objeto era idêntico a uma câmara fotográfica instantânea. Uma vez usada, o efeito seria irreversível. Assim que alguém era fotografado, deixava de existir no mundo físico - a prova disso era o papel fotográfico, representação real e sentida - nunca mais apareceriam numa revelação, e nunca mais seriam vistos. De alguma forma, criaram a mais esplêndida forma de existir, um submundo, ou o "outro lado", como gostavam de lhe chamar. Todo um universo onde as almas coexistiam e eram belas pela sua essência, como uma vida de olhos fechados. 

A solidão levou-os a encontrarem-se, e estava na altura de fazerem a passagem. Naquele momento, a cidade humana parecia-lhes vazia. Todos eles tinham almas distintas, mas naquele momento eram um só. A lua erguera-se - estava na hora. 

*

Nunca mais ninguém ouviu falar de Augustus ou de qualquer uma das pessoas que o acompanhavam. Na verdade, só repararam nas suas casas inabitadas muito tempo depois, já ninguém vivo se lembrava de a quem pertenciam. Mas eles lá estavam, apesar de não se verem. Estavam lá, perfeitos e reais. Felizes e completos. Eram o luar. Eram a ponta dos pés frios depois de um sonho mau. 

E a câmara... ela ainda anda por cá, há anos a vaguear pelo mundo, a abrir portas ao "outro lado" a mais almas com coragem suficiente para uma entrega total. Regida pelas leis da atração, vai captando a solidão deste e daquele, preenchendo os espaços vazios. O corpo não é o importante. A beleza está nos olhos de quem a vê. E se formos fortes o suficiente, podemos vê-la até no escuro. 

Conhecemos o início, alguns meios, mas o fim ainda está por vir. E quando acontecer, ninguém o saberá. Seremos livres, de verdade - fantasmas de alma.

4 comments:

  1. Boa noite,

    Eu, que gosto tanto de palavras, hoje perco-as todas, que grande post, uma história que prende do inicio ao fim e, no final de tudo, deixa um ensinamento tão verdadeiro, tão real.
    Brilhante, brilhante mesmo.

    Um beijinho :)

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    1. Significa o mundo para mim, só não tenho estrelas suficientes para agradecer ∴ ♥

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  2. E assim começa uma grande história capaz de prender a atenção por gerações e permanecer tão actual como no dia que foi criada, e mesmo antes.

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